Você já ouviu falar em São Lúcifer? Pois é, ele existe e essa é uma representação dele em uma capela de Cagliari, na Itália, que inclusive celebra a festa de São Lúcifer todo dia 20 de maio. Mas como é que pode um bispo católico, venerado como santo, ter esse nome, Lúcifer? Então, para entender isso, a gente precisa falar um pouco sobre o cristianismo nos tempos do Império Romano, sobre alguns textos judaicos que acabaram não entrando na Bíblia e sobre como um rei babilônico virou uma estrela e depois um anjo caído, pelo menos segundo as interpretações que foram sendo feitas ao longo da história.
E a gente precisa falar também das camisas de Insider, que não é exatamente uma peça fundamental para entender a história de Lúcifer e dos Anjos Caídos, mas uma peça fundamental para quem busca praticidade, funcionalidade na hora de se vestir. É uma camisa extremamente confortável, que não desbota, não precisa passar, é anti-odor, então, assim, super prática. E se vocês entrarem no site pelo link que eu vou deixar aí na descrição do vídeo e no primeiro comentário fixado e colocarem lá o cupom...
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Nesse período, essa nova religião vinha se tornando cada vez mais forte no Império e vários concílios, ou seja, reuniões de líderes cristãos, vinham sendo convocados por imperadores para definir uma série de questões disciplinares e doutrinais na Igreja. E o nosso amigo, o Lúcifer, participou de pelo menos um deles, que foi o concílio de Milão. Lá ele se posicionou radicalmente contra o arianismo, que era uma doutrina que dizia que Cristo tinha sido criado e, consequentemente, que ele não era co-eterno nem co-substancial com Deus Pai. Só que, para o azar dele, o arianismo nessa corrente teológica era a preferida do Constâncio II, do imperador, que decidiu, então, prender o Lúcifer no seu palácio e depois banir o Lúcifer para a Palestina e, mais tarde, para o Egito. E, mesmo assim, durante o exílio, o Lúcifer continuou mandando cartas para o imperador, tentando convencê-lo de que ele estava errado.
Ele não teve muito sucesso nessa empreitada, mas o Constâncio, em determinado momento, acabou morrendo e o banimento do Lúcifer foi retirado e ele pôde voltar a circular pela região da Itália. e participou ali de várias novas disputas doutrinais. Nesse período ele escreveu textos como sobre não conviver com os heréticos e sobre não perdoar aqueles que transgrediram contra Deus, argumentando nesses textos que os defensores do arianismo, que era a corrente que ele combatia, mesmo se eles abandonassem essa doutrina e se arrependessem, eles não deveriam ser reintegrados à igreja, que foi uma posição considerada muito extrema e excessiva por figuras como Santo Agostinho, e São Jerônimo, mas que também teve vários apoiadores, que ficaram conhecidos como os Luciferianos.
Depois da sua morte, o Lúcifer de Cálire começou a ser venerado como santo na Sardenha, e até hoje, como eu disse, tem uma capela por lá dedicada a ele, que celebra todo dia 20 de maio a festa de São Lúcifer. Mas o status de santo do Lúcifer ainda gera bastante controvérsia e é um tanto nebuloso. Nunca houve um pronunciamento oficial, definitivo, nem que reconhecesse e nem que negasse a sua santidade. Agora, talvez a parte mais intrigante dessa história nem seja nenhum desses eventos especificamente, mas sim o fato desse camarada chamar Lúcifer. Como que pode uma pessoa, um bispo e talvez até um santo ter sido batizado ou ter escolhido em algum momento da sua vida esse nome Lúcifer?
Então, a questão é que na época dele, no século IV, esse nome significava uma coisa muito diferente. Na verdade, várias coisas. Primeiro, Lúcifer é uma palavra no latim que significa literalmente portador da luz. Lux é luz e fer vem de carregar ou trazer.
E no contexto greco-romano, essa palavra era usada principalmente para se referir ao astro que anunciava o amanhecer, que trazia, de certa forma, ou vinha na frente da luz do dia, que é Vênus, ou a estrela da manhã, ou a estrela da alva, como também é chamado. Isso tem a ver principalmente com o fato de que pouco antes do nascer do Sol propriamente, Vênus já começa a brilhar no horizonte e parece meio que... puxar o sol com ele, como se fosse o seu anunciador, o seu arauto, o portador da luz. Por isso, na Grécia Antiga, esse astro era personificado como sendo o filho da deusa Eos, que é a deusa da manhã, e ele era chamado de Fósforos, aquele que traz a luz, ou Eósforos, aquele que traz a manhã. E na Roma Antiga, essa exata mesma personificação recebia o nome de Lúcifer.
Só que esse nome não era necessariamente um nome próprio e nem sempre se referia a essas personificações. Às vezes significava simplesmente o astro mesmo, ou então o amanhecer. E é principalmente nesses sentidos que esse termo aparece na Bíblia. Quer dizer, foi principalmente nesses sentidos que esse termo passou a aparecer na Bíblia.
quando ela foi traduzida para o latim. Na Latina Vulgata, que é a principal dessas traduções, que aliás foi feita exatamente nos tempos de São Lúcifer, ali no século IV, a palavra Lúcifer aparece cinco vezes. No livro de Jó, por exemplo, é dito que tua vida ressurgirá como o meio-dia, a escuridão será como a manhã.
Esse manhã, no latim, foi traduzido exatamente como Lúcifer, na Latina Vulgata. Também no livro de Jó, aparecem algumas referências a constelações e uma delas foi traduzida como Luciferum, uma inflexão de Lúcifer no latim. Nos Salmos, Lúcifer também aparece, dessa vez num trecho que fala sobre a aurora da juventude.
Esse aurora foi traduzido como Luciferum. E até no Novo Testamento a gente encontra um Lúcifer. Na segunda carta de Pedro, a expressão estrela d'alva, ou estrela da manhã, que era fósforos no original grego, ficou como Lúcifer no latim. E nenhuma dessas passagens tem absolutamente nada a ver com o diabo.
Todas elas aparecem em contextos até bastante positivos, inclusive contextos de esperança e de renovação da luz finalmente brilhando depois de um período de trevas. Vale a pena dizer também que até o próprio Cristo no livro de Apocalipse é chamado de a estrela da manhã, só que no latim a tradução acabou ficando como Stellan Matutinam e não como Lúcifer, mas a ideia é exatamente a mesma. Bom, mas de onde que vem então essa relação da palavra Lúcifer com o diabo? Lúcifer Eu falei que eram cinco as ocorrências da palavra Lúcifer na Bíblia, e até agora eu só trouxe quatro. Justamente porque é essa quinta passagem que vai acabar colando esse nome Lúcifer no príncipe dos demônios, ou melhor ainda, na sua forma angélica, quando o pai da mentira ainda era um filho de Deus.
O texto em questão é Isaías capítulo 14, versículo 12. Como caíste do céu, ó Lúcifer, e a gente vai deixar sem traduzir aqui por enquanto, filho da aurora. Como caíste por terra, tu que ferias as nações. Nessa passagem, a palavra Lúcifer traduz a expressão hebraica Helel ben Sharrar, literalmente brilhante, filho do amanhecer.
Ou seja, não traduz a palavra Satã, nem Satanás, nem nada parecido. Mas mesmo assim, vários autores cristãos, desde os primeiros séculos, leram esse texto realmente como se referindo à queda de um anjo, um anjo que se tornou o inimigo supremo de Deus e da humanidade. Tertuliano de Cartago, por exemplo, entre o século II e III, diz que essa passagem deve significar o diabo E Orígenes de Alexandria, na mesma época, diz que esse trecho de Isaías ensina a respeito de outro poder adversário Que por um momento foi luz Agora, como que esses autores chegaram a essa conclusão?
E de onde que eles tiraram essa ideia de que o diabo um dia foi um anjo de luz? Ou mais ainda, de onde que eles tiraram essa ideia geral de anjo caído? Então, essa ideia é anterior ao cristianismo, mas não muito anterior.
Na Bíblia hebraica ou no Antigo Testamento, ela praticamente não aparece, e quando aparece, ela aparece de uma forma muito diferente, muito mais minimalista, talvez, do que a forma como a gente está acostumado a pensar em anjos caídos atualmente. O principal texto relacionado a isso é um texto bastante enigmático, que aparece um pouco antes da história do dilúvio, lá no livro de Gênesis. O texto diz o seguinte, Quando os homens começaram a ser numerosos sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas e tomaram como mulheres todas as que lhes agradaram. Ora, naquele tempo e também depois, quando os filhos de Deus se uniram às filhas dos homens e estas lhe davam filhos, os nefilim habitavam a terra. Estes homens famosos foram os heróis dos tempos antigos.
Tá, mas o que significa esse texto? Quem são as filhas dos homens, os filhos de Deus, os nefilim? Infelizmente, o texto original não faz a menor questão de explicar nada disso e passa logo na sequência para a história do dilúvio Mas uma série de textos posteriores, que nenhum deles entrou na Bíblia, diga-se de passagem se propuseram a explicar e a expandir longamente essa passagem do Gênesis E é exatamente nesses textos que a gente encontra pela primeira vez as ideias que a gente tem hoje mais comum sobre os anjos caídos sobre rebelião celestial, sobre o anjo de luz orgulhoso e invejoso que viram o demônio e coisas desse tipo.
O principal exemplo disso é o livro de Enoque. Segundo esse texto, os anjos, os filhos do céu, viram e desejaram as mulheres mortais. E aí a gente já tem uma explicação de quem são os filhos de Deus, que são os anjos, e quem são as mulheres mortais, que são as humanas.
E o texto continua dizendo que um dos anjos, chamado Semyasa, liderou 200 outros anjos até o Monte Hermon, e lá eles tomaram mulheres e ensinaram a elas várias artes ocultas. E, além disso, o texto fala também que eles tiveram filhos gigantes com as mulheres e cada um deles chegava a cerca de 300 cúbitos de altura, ou seja, quase 150 metros, esses filhos dos anjos caídos ou dos anjos descidos voluntariamente com as mulheres. Esses gigantes, que são os chamados nefilim, começaram a consumir toda a produção de alimento, porque afinal de contas eram muito grandes, e em determinado momento a comida acabou e eles começaram a consumir os próprios produtores, as pessoas, e depois disso começaram a consumir uns aos outros, devorar uns aos outros. E para resolver esse caos absoluto, Deus enviou o anjo Miguel, que prendeu Semiása e os seus seguidores debaixo da terra, e lá ainda, segundo esse texto, esses anjos vão ficar acorrentados até o dia do juízo final, que é quando eles vão ser lançados no fogo e exterminados de uma vez por todas.
E aqui, se a gente trocar o nome Semiasa por Lúcifer e tirar essa história dos gigantes canibais, ela até que parece bastante familiar. Um anjo lidera outros anjos para fazer algo contra a vontade de Deus, é punido, lançado no subterrâneo, ou infernos no latim, e lá ele aguarda a sua destruição final por meio do fogo, no dia do juízo. E o curioso é que, como eu disse, essa história não está na Bíblia, e sim num livro pouquíssimo lido hoje, que é o livro de Enoch, que é relativamente tardio na história do judaísmo antigo, escrito ali por volta do século III, II a.C. Mas por mais que esse livro não seja tão popular hoje, o fato é que ele era extremamente popular nos tempos em que o cristianismo começou a se desenvolver.
O livro de Judas mesmo, no Novo Testamento, faz até uma referência direta ao livro de Enoch. E algumas passagens das cartas de Pedro só fazem sentido se você conhece as histórias introduzidas pelo livro de Enoch. Só que tem um detalhe, nessa história do livro de Enoch que eu acabei de contar, o pecado dos anjos que descem do céu, desses anjos caídos, acontece pouco antes do dilúvio, ou seja, depois do pecado de Adão e Eva. E no nosso imaginário atual e até no imaginário medieval e antigo, o líder dos anjos caídos, em muitos casos, é associado à serpente infiltrada ali no Jardim do Éden.
E para isso fazer sentido, o pecado do anjo mau teria que ter acontecido muito antes do dilúvio. antes do pecado de Adão e Eva. E outro detalhe também, o pecado do anjo mau na história que eu contei, de Enoch, é principalmente a luxúria, o ver e desejar as mulheres mortais, e não o orgulho, o desejo de ser igual ou superior a Deus, que é como é mais comum a gente pensar hoje. Só que a gente também encontra essas duas ideias, a ideia do pecado angélico anterior a Adão e Eva, e a ideia do pecado angélico como sendo o orgulho, em fontes antigas e inclusive em outro livro atribuído também a Enoch, que é chamado de Segundo Livro de Enoque, ou então Livro dos Segredos de Enoque, que diz o seguinte Mas um dos membros da Ordem dos Arcanjos se desviou juntamente com a divisão que estava sob sua autoridade.
Ele concebeu a ideia impossível de que poderia colocar seu trono mais alto do que as nuvens acima da terra e que poderia se igualar ao meu poder. E aqui é Deus falando, né? E eu o arremessei das alturas juntamente com seus anjos, e ele voava incessantemente pelo ar acima do abismo.. E assim eu criei os céus inteiros e veio o terceiro dia. Aqui, então, um anjo tenta se colocar acima de Deus ainda nos dias iniciais da criação, na semana da criação, entre o segundo e o terceiro dia.
Mas ele é derrubado com outros anjos que também tinham participado dessa espécie de rebelião celestial. E é dessa literatura, então, desses dois livros, principalmente atribuídos a Enoch, que nasce a maior parte do nosso imaginário sobre os anjos caídos e sobre o seu líder. Mas ainda falta conectar...
isso tudo com Lúcifer propriamente, com o nome Lúcifer. Como é que Lúcifer se tornou o nome do anjo mau, que no primeiro livro de Enoque chama Semiasa e no segundo livro de Enoque chama Satanael. Aqui, finalmente, a gente pode voltar para aquela questão da Bíblia latina e principalmente para a quinta ocorrência da palavra Lúcifer, que eu citei lá de Isaías 14, 12. Como caíste do céu, ó Lúcifer, filho da Aurora, como foste atirado à terra, vencedor das nações.
Acho que agora já dá para entender por que alguns cristãos dos primeiros séculos, profundamente imersos no imaginário enoquiano sobre a queda dos anjos, entenderam esse texto como se referindo ao diabo, ao príncipe dos demônios. Mas a questão é que se a gente for ler essa passagem no seu contexto maior, voltando alguns versículos, esse entendimento fica bastante comprometido. E não por acaso, na própria tradição rabínica, judaica posterior, e no estudo moderno da Bíblia também, O consenso é de que essa passagem não se refere a um anjo, nem a um demônio, mas sim a um rei, um rei humano.
Começando lá de Isaías 14, 3, o texto diz o seguinte E sucederá, no dia em que Yaveth der descanso do teu sofrimento, da tua inquietude e da dura servidão a que foste sujeitado, que entoarás esta sátira a respeito do rei da Babilônia. A situação aqui é que Judá foi derrotado pela Babilônia e levado para o exílio. E até então, o rei da Babilônia é que está como vitorioso, poderoso, exaltado, e que tem Judá e vários outros reinos submetidos aos seus pés. Mas Isaías... Ele profetiza que, em breve, essa situação de opressão vai acabar.
O rei da Babilônia vai cair, vai ser humilhado, e o povo de Judá vai satirizar, vai tripudiar, vai fazer canções cheias de ironia sobre a humilhação desse rei. E a canção que eles vão fazer vai ser mais ou menos o seguinte. Como terminou o opressor? Como terminou a arrogância? E a vé quebrou o bastão dos ímpios, a vara dos dominadores, daquele que feriu os povos com furor, que feria com golpes intermináveis, que com ira dominava as nações, perseguindo-as sem que o pudessem deter.
O mundo inteiro repousa, está tranquilo. Todos rompem em gritos de alegria. Até os ciprestes se regozijam por causa de ti, bem como os cedros do Líbano.
Depois que jazes caído, ninguém mais sobe até aqui para pôr-nos abaixo. Quer dizer, agora que caiu o rei da Babilônia, todos os povos respiram aliviados. E até as árvores, que antes eram desmatadas por esse poderoso império, celebram a queda do rei. E o texto continua.
Nas profundezas, o Sheol se agita por causa de ti para vir ao teu encontro. Para receber-te despertou os mortos, todos os potentados da terra. Fez erguerem-se de seus tronos todos os reis das nações. Todos eles te interpelam e te dizem.
Então também tu foste abatido como nós, acabaste como nós. O teu falso foi precipitado no Sheol, juntamente com a música das tuas arpas. Sob o teu corpo, os vermes formam um colchão, os bichos te cobrem como um cobertor. A ideia aí é que o próprio mundo dos mortos, o Sheol, se agita para receber aquele que achavam que era invencível, todo poderoso e que nunca fosse chegar nesse destino. Os outros reis fazem questão, inclusive, de confirmar que é ele mesmo que está ali, que ele também, no final das contas, foi derrotado, que toda a glória, a música e o luxo que o acompanhava foi convertido em silêncio, vermes e podridão.
E é aqui, nesse trecho específico, dentro dessa sátira ao rei da Babilônia, que alguns cristãos e alguns judeus, dentro da perspectiva enoquiana, viram ali a presença de um anjo caído, de uma referência à revolta celestial de Lúcifer. Mas esse trecho simplesmente continua a sátira ao rei da Babilônia. A ideia é que esse rei, nos seus dias de glória, chegou à arrogância de pensar que era tão poderoso ou mais poderoso do que Deus.
Na cabeça dele, o lugar de direito que ele tinha era o trono mais elevado, mas na realidade o que aconteceu, ou pelo menos o que Isaías estava profetizando, era de que a sua posição final seria não a mais elevada, mas a mais baixa de todas, o abismo, o mundo dos mortos, o Sheol. E é nesse contexto satírico, irônico, de inversão, que o rei da Babilônia é chamado de brilhante, filho do amanhecer, Halel ben Sharrach, ou... Lúcifer, no latim. Não porque o autor do texto acreditasse que o rei da Babilônia merecesse esse título, mas porque ele aplicava isso ironicamente. É como quando alguém tira sarro de outra pessoa que ele considera arrogante, dizendo alguma coisa do tipo assim, ah, o bonzão se deu mal, o bonitão se deu mal, o espertalhão se deu mal.
Não é que de fato ele ache que a pessoa seja nada disso, é uma ironia, é uma sátira. E alguns estudiosos apontam até que esse tema da humilhação do arrogante, usando especificamente a imagem da estrela da manhã, faz referência a um mito ugarítico que a gente encontra ali no chamado Ciclo de Baal, que fala de Atstar, o brilhante, que tenta se elevar acima do deus Baal, mas acaba sendo derrubado. Atstar, o brilhante, caiu.
Ele caiu do trono do valoroso Baal, diz lá o texto do Ciclo de Baal. Várias outras referências mitológicas também já foram cogitadas para tentar identificar um paralelo mais direto com o texto de Isaías, mas o que importa mais para nós aqui é que o sentido geral do texto é bem claro. O rei da Babilônia, que até então se exaltava, será humilhado, que é o que a audiência original desse texto de Isaías estava aguardando ansiosamente para que acontecesse. E, por outro lado, Judá, que estava sendo humilhado, seria exaltado, o que também era uma expectativa muito forte ali no período.
E a gente poderia até continuar lendo o resto da passagem aqui, que continua essa sátira e deixa ainda mais claro essa dimensão política e histórica do texto, mas eu acho que já está bom, já está suficiente para identificar... quem que é a figura chamada de Helel Ben-Shahar, ou de Lúcifer no latim, nesse trecho de Isaías. Não sei você, mas eu acho difícil entender esse texto como se referindo a outra coisa que não seja o rei da Babilônia.
Quer dizer, pelo menos numa leitura mais direta, histórica do texto. Tanto que até alguns autores cristãos antigos que viam a presença do diabo nesse texto, não negavam também, alguns deles, pelo menos, a referência direta ao rei da Babilônia. Santo Agostinho, por exemplo, escreveu que, abre aspas, Isaías representa o diabo sob a pessoa do rei da Babilônia, como tu caíste, ó Lúcifer, filho da manhã, fecha aspas.
Mas sem uma imersão realmente muito profunda no imaginário dos livros de Enoch e dessa questão dos anjos caídos, é muito difícil pensar que esse texto, que é muito mais antigo que os livros de Enoch, tenha qualquer coisa a ver com os seres celestiais. Não por acaso, a tradição rabínica a partir do Talmud babilônico vai identificar o brilhante filho do amanhecer, o Relel Ben-Shahar, de Isaías 14, principalmente como uma referência a Nabucodonosor, um rei da Babilônia, e os estudiosos hoje também costumam apostar em Nabucodonosor ou Nabonides, que é outro rei babilônico, como sendo as referências do Helel Ben-Shahar de Isaías, ou do Lúcifer, se a gente quiser usar o termo em latim. Então, para concluir, quando São Lúcifer nasceu, já existia a ideia de anjos caídos e de um líder dos anjos caídos, mas ele era chamado por outros nomes, Samyaza, Azazel, Satanael, Satã, que é adversário em hebraico, Diabolos, que é adversário em grego, mas não Lúcifer.
Foi com a tradução da Bíblia para o latim. e o uso da palavra Lúcifer para traduzir esse texto de Isaías, que os cristãos antigos que já associavam esse texto ao diabo começaram a colar esse nome, Lúcifer, ao príncipe dos demônios. E por isso, depois do século IV, que foi quando foi feita essa tradução para o latim da Bíblia, é difícil encontrar alguém chamado Lúcifer na cristandade, né?
Quanto mais alguém chamado São Lúcifer. Mas antes esse nome não tinha problema nenhum, né? É um nome até bonito, né?
Aquele que traz a luz. Mas realmente agora aqui na nossa cultura esse nome está completamente identificado com o diabo é bem complicado mesmo de batizar um filho como Lúcifer. E é isso. Se você quiser se aprofundar nesse assunto, eu recomendo dar uma olhada em um artigo que está aí na descrição, em português e com acesso aberto. É um artigo do Carlos Augusto Vailate, doutor em estudos judaicos pela USP, que traz parte dessa história de forma bem interessante e tem outras referências também em inglês que complementam o texto do Vailate.
Aproveite aí as leituras e nos vemos aí nos próximos vídeos. Falou!