Eu gostaria de iniciar, certo? Lembrando que o rótulo Geografia é um rótulo muito antigo na cultura ocidental. Um rótulo que remonta à antiguidade clássica, porém que conhece diferentes significados ao longo da história.
Nós vamos trabalhar aqui com um significado muito específico, historicamente, que é a Geografia Moderna. A geografia moderna que é a geografia que se concebe como uma ciência, no sentido da ciência moderna, a geografia da época moderna. Essa geografia, esse projeto de geografia, poderíamos dizer, surge no final do século XVIII com uma clara inspiração enciclopédica. A meta dessa geografia é realizar uma síntese de todos os fenômenos observáveis na superfície da Terra. Alexandre von Humboldt, um dos propositores desse projeto, diferencia natureza e Terra, certo?
Vendo a Terra, o planeta, como uma manifestação da natureza dotada de individualidade, certo? Vendo a Terra como um todo. Isto é, como uma totalidade.
Para ele, nesse sentido, os fenômenos da natureza, ao ocorrerem na superfície terrestre, apresentam uma determinação própria dessa localização. Uma determinação que Humboldt vai chamar de ordem telúrica, que seria a ordem que organiza. o relacionamento dos fenômenos no planeta. Explicar essa ordem seria a meta da geografia, dessa geografia científica, vista por Humboldt como a parte terrestre da ciência do cosmos.
O objeto específico dessa geografia seriam as conexões entre os fenômenos da Terra e em cada lugar da Terra. A localização da proposta rumboldtiana e do centro da reflexão geográfica na primeira metade do século XIX, certo? Já vai nos dar alguns elementos para pensar o contexto histórico que animava esse projeto de geografia moderna. Esse projeto...
surge na Alemanha. Na época, a Alemanha é um conglomerado político não unitário, isto é, é uma área que não havia logrado constituir-se como um Estado moderno, uma área que não havia efetivado um processo de unificação nacional. Tratava-se, assim, de uma zona politicamente fragmentária.
onde se desenvolvia aquele processo que vários autores denominam como a via prussiana de desenvolvimento do capitalismo. Isto é, áreas onde as relações capitalistas penetram sem romper com a ordem feudal pré-existente. Alguns autores chegam mesmo a falar em uma modernização do feudalismo, na via prussiana, e um dos traços é esse de uma tardia unificação nacional com relação aos demais países da Europa. A geografia moderna é, nesse sentido, um projeto do capitalismo retardatário, da ilustração reflexa ou do duplo presente que vive a Alemanha na primeira metade do 800. Isto é, a Alemanha vive, os intelectuais alemães vivem uma situação de um contexto europeu, onde já ocorreu a Revolução Francesa, etc., porém, numa zona ainda marcada por fortes traços feudais. Na verdade, o projeto da geografia moderna é uma formulação da intelectualidade junker, nobreza prussiana, na sua própria luta pela unificação nacional da Alemanha.
E é interessante que, por ironia, esse país sem colônias, certo? A Alemanha, é que vai propor um campo disciplinar que se consolida, na verdade, como um grande inventário das áreas de colonização europeia. A abertura do mundo ao novo colonialismo do século XIX foi um dos elementos centrais para estimular a rápida difusão da disciplina, criando um campo acadêmico sólido ao longo do século XIX.
A gente poderia dizer que ao final do 800, em todos os países europeus... e mesmo fora da Europa, já existem instituições, cátedras, institutos diretamente voltados para a prática da pesquisa geográfica. O outro elemento explicativo da difusão da geografia foi a afirmação do nacionalismo e dos Estados nacionais.
Nesse processo... A disciplina cumpriu um importante papel que a gente poderia chamar de doutrinação patriótica, isto é, de afirmação das identidades nacionais por meio da ampla inserção da geografia nos sistemas de ensino. Então, é a conjugação entre esses dois fatores, a expansão colonial e a afirmação das identidades nacionais.
que explicam a estruturação da geografia nos países centrais e com uma característica muito específica, talvez singular entre essas ciências, que é a estruturação em escolas nacionais. Quer dizer, a geografia, ao contrário de outras ciências, mais do que se agrupar por métodos, se agrupou por nacionalidades. E não raramente...
em escolas nacionais antagônicas, antagonismo esse baseado em lutas reais por espaço, como no caso clássico das escolas alemã e francesa. De um lado, a escola alemã, capitaneada por Friedrich Hatzel. De outro lado, a escola francesa, tendo na sua direção Paul Vidal de la Blache, que dão a tônica.
O debate entre essas duas escolas, alemã e francesa, dá a tônica da discussão disciplinar no final do século XIX. Conhecer a terra, inventariar os lugares, cartografá-los, levantar os recursos naturais existentes, afirmar as identidades culturais dominantes. Isso se constituiu... a tarefa desse campo disciplinar que abraça o empirismo positivista como sua orientação básica metodológica. A ciência dos lugares, a ciência das localizações, a ciência que busca realizar uma síntese entre fenômenos naturais e sociais, explicando...
o relacionamento dos grupos humanos com a Terra, ou demarcando a influência da natureza sobre a história. É essa geografia que ingressa no século XX. Século XX, uma era de especializações, uma era de forte competição acadêmica, onde as corporações intelectuais... têm cada vez mais que legitimar e justificar sua existência. Uma época de saberes especializados por excelência.
Uma era de experts, uma era anti-enciclopédica. E daí muito problema que a geografia vivenciará ao longo do século XX. A geografia, essencialmente empírica, Teve então de trafegar pelos meandros da teoria, aprimorar seus métodos, sofisticar seu discurso, precisar seus propósitos, enfim, calibrar o seu foco de investigação. As noções antigas, preliminares, de lugar, por sua vaguidade, e de superfície da Terra, por sua generalidade, tiveram nesse processo de ser melhor especificadas.
Assim como também tiveram que ser melhor especificados os procedimentos e os itinerários analíticos praticados pelos geógrafos. Por que os lugares variam? Emerge como a questão básica de uma geografia que se define como a ciência da diferenciação de áreas. Existem padrões espaciais recorrentes? Pergunta uma geografia que ainda se vê como ciência positiva.
Será a nossa disciplina uma teoria do habitat, a ciência do homem habitante? Ou estudará as projeções dos modos de produção na superfície da Terra? E a experiência vivida dos lugares? E as representações dela derivadas?
Não fazem parte do universo de indagação da geografia? São essas as discussões e debates que atravessam o campo disciplinar ao longo do século XX. Em meio a esses debates, a teoria geográfica vai se enriquecendo e o quadro conceitual utilizado pela disciplina vai se aprimorando.
e se diversificando. Todos os conceitos buscando exprimir uma unidade básica de investigação da geografia. Não raros conceitos identificados com uma escala de análise de fenômenos interrelacionados. Enfim, todos buscam uma divisão legítima do espaço terrestre.
Região, território, paisagem, meio, podem ilustrar esta afirmação. Comecemos pela região, vista como um fato geográfico, isto é, uma realidade fática, algo que existe independente da consciência do pesquisador. Esse conceito foi concebido inicialmente como uma porção de espaço dotada de uma originalidade própria, um espaço com uma fisionomia. Fisionomia essa que o individualizava na superfície terrestre.
Individualizava, seja pelas características naturais, um relevo, uma vegetação, um sistema hidrográfico, seja pelas características humanas. Um estilo arquitetônico, um tipo de agricultura, um processo de ocupação. Enfim, a região como esse espaço com individualidade própria. E dessa concepção fisiográfica, a região vai, ao longo do século XX, cada vez mais ser qualificada por uma estrutura econômica. Quer dizer, cada vez mais...
É a economia regional que define a região, ou por uma rede hierarquizada de cidades, com a hierarquia urbana definindo a região agora adjetivada como região polarizada. Em tempos mais recentes, a identidade cultural também emergiu como qualificador de uma região. e mesmo a sua expressão política no regionalismo.
Então, mais recentemente, temos concepções, como a de Dora e Massey, que diz que é o regionalismo que cria a região. De todo modo, a ideia de região está sempre associada a um espaço demarcado por um critério de homogeneidade, que a qualifica como uma unidade espacial de análise específica. Já o conceito de território conhece qualificações mais restritas.
Na visão clássica, o domínio de um espaço o qualifica como um território. Nesse sentido, é a apropriação, é o controle social que definiriam os territórios vistos como conceito eminentemente político. Numa tentativa de síntese, o território como área de exercício de um poder.
E a identificação desse poder com a dominação estatal completa a conceituação mais tradicional que relaciona. Território como âmbito espacial de soberania de um Estado ou uma jurisdição estatal em diferentes escalas. O que nos levaria a poder falar de territórios, tantas fossem as divisões administrativas do poder.
Território estadual, território municipal, mas principalmente território... estatal, nacional. Em ambos os casos, é a prática política que demarca os limites espaciais, com a delimitação de fronteiras formais ou efetivas pelo domínio de um dado espaço.
Na segunda metade do século XX, uma concepção mais antropológica de território começa a emergir, coexistindo com essa visão mais tradicional jurídico-política. Trata-se da qualificação do território como um espaço identitário, capaz de sustentar múltiplas identidades socioculturais. Enfim, um espaço de referência cultural. logo de fronteiras difusas e sobrepostas. Vemos então que se tratam de dois conceitos de natureza e de índole bastante diversa.
A região como um espaço qualificado por uma homogeneidade e o território qualificado por referências políticas ou culturais. mas enfim como um espaço delimitado a partir de uma apropriação social necessariamente. Tanto a região quanto o território podem ser aprendidos também como paisagens.
Este é um conceito que qualifica campo visual de um sujeito observador. Isto é, a paisagem é percebida por um sujeito, certo? Um sujeito que a percebe enquanto realidade objetiva para algumas correntes ou enquanto realidade subjetiva para outras correntes. De todo modo, trata-se de um espaço delimitado pelo horizonte de observação do sujeito.
A paisagem tem assim uma morfologia captada visualmente. Visualização que em si mesma fornece um todo geográfico para análise e fornece uma escala de tratamento geográfico da superfície da Terra. Trata-se a paisagem... de um conjunto espacial dotado de múltiplos elementos que se articulam em sua composição.
Uma expressão do relacionamento de variados processos naturais e sociais, os quais podem ser equacionados enquanto uma fisiologia da paisagem. Isto é, a paisagem tem uma forma e a paisagem... tem um funcionamento, uma forma diretamente percebida e um funcionamento que necessita ser investigado para além da mera visualização. Então, trabalhamos assim três conceitos básicos, oriundos do século XIX, mas que vão sendo especificados, trabalhados, detalhados. problematizados ao longo do século XX.
Além da região, do território e da paisagem, talvez os conceitos pilares, a geografia contempla também outros conceitos, como meio, geossistema, habitat, área, ambiente, entre alguns outros. Por meio deles... A geografia tenta dar conta de recortes espaciais passíveis de dividir a superfície da Terra e individualizar unidades legítimas para o seu estudo. Então, é o tempo todo a geografia tentando chegar ao que seria o seu objeto primeiro de análise em divisões que a própria realidade terrestre... forneceria.
No plano teórico, a categoria filosófica espaço fornece a base para pensar as peculiaridades dessa ótica disciplinar. Talvez a única unanimidade encontrada nas teorias da disciplina seja a conclusão de que ela se refere a dimensão espacial da realidade. Talvez o único ponto de total concordância entre os geógrafos seja a conclusão de que a geografia é algo que tem a ver com o espaço. Contudo, a categoria espaço é bastante complexa já no âmbito da discussão filosófica.
Nesse sentido, o espaço não é um conceito. Em primeira mão, o espaço é uma categoria filosófica. O conceito é uma coisa menor frente a uma categoria filosófica. Para explicitar uma categoria filosófica, normalmente temos que usar um livro inteiro.
O conceito pode ser definido num verbete, certo? E o espaço é, antes de tudo, uma categoria. E uma categoria... complexa e polêmica já no plano da filosofia, o que fornece aos geógrafos a possibilidade de distintos entendimentos sobre o que vem a ser o espaço e isso propicia variadas inspirações para a reflexão geográfica que pode transitar. por esses diferentes significados que a filosofia atribui a essa categoria.
Podemos lembrar, como dois dos conteúdos mais utilizados na reflexão geográfica, a visão newtoniana de espaço, que o vê como um suporte dos fenômenos. Isto é, para Newton... Todo fenômeno ocorre em um certo espaço e, nesse sentido, todo fenômeno seria dotado de uma espacialidade passível de ser mensurada, num primeiro momento, na sua própria extensão, que é uma concepção totalmente diferente da visão kantiana do espaço. Para o Kant...
O espaço é uma categoria da intuição, isto é, o espaço não é uma materialidade, mas o espaço é uma forma de perceber os fenômenos. Nós já vemos as coisas espacialmente. O espaço, nesse sentido, não é uma realidade objetiva, externa ao sujeito, mas é um elemento, certo, da capacidade cognitiva. do próprio sujeito.
Notem que são duas visões completamente distintas de espaço já no plano da filosofia. A visão newtoniana, que foi de certo modo na primeira metade do século XX a mais utilizada, e em anos, em décadas mais recentes, o emergir da concepção kantiana notada... da fenomenologia no âmbito da reflexão geográfica.
De todo modo, em variadas formulações, a geografia se afirma, na atualidade, como uma teoria do espaço terrestre. A geografia poderia tranquilamente ser definida hoje, a partir de todo esse seu esforço teórico de mais de um século, como uma teoria do espaço terrestre ou... de espaços mais específicos, geralmente adjetivados.
Espaço físico, espaço natural, espaço econômico, espaço político, espaço urbano, espaço produzido, espaço vivido e várias outras possibilidades. a geografia seria, antes de tudo, uma teoria do espaço terrestre ou desses espaços mais circunscritos que se alocam na superfície terrestre. Seria, portanto, peculiaridade maior da disciplina, esse destaque e essa centralidade para aquilo que poderíamos chamar de uma dimensão espacial. da realidade.
Tomemos aqui dois exemplos de tratamento do tema. De um lado, Milton Santos, que diz que devemos ver o espaço como um fato, como um fator e como uma instância. Ver o espaço como fato na medida em que ele é um atributo. material da superfície do planeta. Os espaços são passíveis de serem medidos, localizados, e nesse sentido, o espaço pode ser visto como um fato geográfico.
Como um fator na medida em que o ordenamento dos espaços, as características do espaço... sobre os processos que ali ocorrem. O espaço não é inerte, o espaço tem a capacidade de influir nos processos que nele ocorrem, muitas vezes estimulando ou obstaculizando o seu próprio uso.
Nesse sentido, o espaço pode ser visto como um fator na análise, por exemplo, da sociedade. Em terceiro lugar, o espaço como uma instância, na medida em que eu posso tentar explicar a vida social a partir da sua dimensão espacial. Eu posso contar a história a partir da formação de um territorial, eu posso analisar uma sociedade a partir do ordenamento territorial.
que ela cria, enfim, o espaço seria um ângulo de análise da vida social. E, nesse sentido, o espaço é tratado por Milton Santos como uma instância. Então, a primeira visão que trazemos aqui, praticamente contemporânea de espaço, do tratamento do espaço, que é ser tomado como um fato, como um fator.
com uma instância. Num tratamento não antagônico a esse, David Harvey defende que o espaço deve ser visto como absoluto, relativo e relacional. Absoluto também naquele sentido de que os espaços são singulares, mensuráveis, identificados, localizáveis.
Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço, então, nesse sentido, o espaço é absoluto. Mas também é relativo no sentido de que os lugares se relacionam, que existem fluxos entre lugares, que existem processos que articulam os lugares. E, finalmente, o espaço é relacional na medida em que ocorrem relações dentro do espaço, certo? Poderíamos exemplificar a ideia de Harvey com uma fazenda.
que tem uma extensão física, um espaço absoluto, porém que utiliza insumos e vende sua produção para outros lugares, depende de uma energia que vem de outros lugares, e nesse sentido o espaço é relativo, porém a própria fazenda tem as suas relações sociais internas, o que tornaria o espaço relacional. São duas visões do tratamento do espaço pela geografia contemporânea. Poderíamos aumentar o número de exemplificações, porém são duas proposições bastante sólidas da discussão contemporânea. Diria que hoje em dia, do ponto de vista da teoria da geografia, uma forte distinção se estabelece entre aqueles que tomam diretamente o espaço como objeto da investigação geográfica e os que vão direcioná-la para a relação sociedade-espaço.
Não é a mesma coisa. Tomar diretamente o espaço como objeto de interesse da disciplina e tomar a relação sociedade-espaço como objeto desse interesse. Nessa última visão, a geografia é claramente identificada...
como uma ciência humana, que estuda relações sociais, como todas as ciências humanas. Aquelas relações sociais específicas pelas quais a sociedade se relaciona com o espaço. Isto é, haveriam relações próprias, culturais, econômicas, políticas, pelas quais a sociedade se relaciona com o seu espaço.
Posto em outros termos, a geografia estudaria a espacialidade da vida social. Uma vida social se expressa em sua dimensão espacial. Tal concepção também convive na atualidade do campo disciplinar com uma forte revivência da perspectiva que privilegia A relação sociedade-natureza. É bom salientar que sociedade-natureza não é sinônimo de sociedade-espaço. E essa visão clássica de relacionamento, no passado se dizia homem-meio, mas modernamente se fala relação sociedade-natureza, se encontra hoje em dia muito estimulada pelo ambientalismo e pelas demandas da gestão ambiental.
Então convivem na geografia tanto visões que têm o espaço como objeto, quanto visões que têm a relação sociedade-espaço como objeto, como visões que têm como objeto a relação sociedade-natureza. E é em face a esse quadro rapidamente descrito que o campo disciplinar vai vivenciar a partir... Do final dos anos 80 do século passado, o questionamento advindo das teorias da globalização e da chamada pós-modernidade.
Fundamentalmente, o desenvolvimento técnico dos meios de transporte e comunicações teve grandes repercussões na reflexão geográfica. A velocidade dos fluxos encurtou as distâncias. A rapidez dos meios aproximou os lugares. Há um autor, um historiador francês da expansão europeia, que disse que o mundo nunca foi tão grande quanto no século XVI. Pierre Chouni.
Parodiando Pierre Chouni, nós poderíamos dizer que o mundo nunca foi tão pequeno quanto nesse início do século XXI. E isso, sem dúvida nenhuma, tem grandes ressonâncias numa reflexão como a geográfica, que como nós vimos, busca dar conta da ordem dos fenômenos no planeta, da diferenciação dos lugares. Tudo mais.
As teorias da globalização salientam as formas de produção flexíveis que rompem com a fixidez das velhas localizações. Uma produção flexível, pós-fordismo, traria, vamos dizer assim, uma liberalização da economia com relação ao espaço. A imaterialidade dos fluxos financeiros que deslocam-se no espaço como informações em tempo real, diminuiria também esse peso do espaço sobre a economia. As empresas multinacionais não respeitariam fronteiras e padronizariam o consumo em escala mundial.
Enfim... Ocorre nesse final do século XX, início do século XXI, toda uma revolução no relacionamento com o tempo e com o espaço. Uma cultura mundializada acompanha tais processos e teria ultrapassado, segundo muitos autores, os localismos e as identidades restritas. As relações em rede teriam substituído a contiguidade dos processos, enfraquecendo os atores políticos da espacialidade moderna, entre eles o Estado Nacional.
Essa compressão, para usar uma expressão do Harvey, contemporânea do espaço, emerge como um elemento afirmador. da condição pós-moderna, aparecendo como um argumento de sustentação de várias finalizações proclamadas pelos autores do pós-modernismo. O fim do Estado, o fim das nações, o fim das fronteiras, o fim dos territórios.
Não é difícil enumerar... Na década de 90, obras com esses títulos. Isso para ficar em apenas algumas finalizações, mais diretamente ligadas à geografia, porque poderíamos lembrar também o fim da ideologia, o fim das classes e, por fim, o fim da história com Fukuyama. Certo?
É interessante destacar que essa perspectiva pós-moderna estimula posições antípodas. no campo disciplinar da geografia. Para alguns autores, vivemos o fim da geografia.
Há autores que falam abertamente nisso, pois a bidisciplina teria perdido o sentido nesse mundo deslocalizado, onde o espaço se padroniza na expansão dos não-lugares. os lugares da supermodernidade, que seriam todos iguais em qualquer parte, e nesse mundo onde as referências locais teriam perdido a efetividade do passado. O discurso geográfico, para essas perspectivas pós-modernas, seria uma classe das grandes narrativas totalizadoras ultrapassadas pela velocidade e pela instantaneidade da pós-modernidade.
Então, para uma série de autores, essas novidades do final do século XX teriam levado ao fim da geografia. Porém, para outros, a atualidade que vivemos coloca a geografia como a mais central das ciências humanas. Quer dizer, para uma série de autores...
A geografia estaria desalojando a história como fornecedora de um sentido para as sociedades, pois o espaço teria substituído o tempo como vetor de explicação do mundo atual. Então a geografia seria importantíssima nessa nova época. A mesmo quem fale como Eduardo Soja, na vigência contemporânea de um materialismo geográfico de forte capacidade explicativa do mundo atual. Então é interessante, mesmo o diagnóstico... Certo?
De certa forma, os mesmos processos alimentando, de um lado, o discurso do fim da geografia e, de outro lado, o discurso de priorização da ótica geográfica, da explicação da realidade. Isso é o que está posto hoje no debate geográfico, além, obviamente, de várias... concepções críticas ao pós-modernismo. E para essas, o estado do mundo, nesse início do século XXI, parece mais repor algumas temáticas clássicas do campo disciplinar, questionando os arautos do inteiramente novo.
Uma terceira posição seria essa, de que vivemos uma época de inovações, mas de inovações que contém características já presentes e já estudadas pela geografia. Hoje, tem-se algumas finalizações como bastante apressadas e como não consistentes. Se vê muito...
Nesse início do século XXI, o aparecimento de livros com o título A Reinvenção, quer dizer, muito daquilo que foi finalizado na década de 90 está sendo reinventado, porque alguns processos são melhor equacionados pelos conceitos e teorias tradicionais do que pelos argumentos. trazidos por essas novas óticas, denominadas pós-modernas. A luta pelo controle de recursos naturais e de lugares seria talvez melhor abordada pela perspectiva geopolítica clássica do que pelas teorias da aldeia global. As barreiras protecionistas E as tentativas de controle da imigração, por exemplo, repõem as fronteiras como realidades geográficas do mundo contemporâneo.
Nacionalismos emergentes e a prática guerreira do choque de civilizações questionam o transculturalismo. A meta... da sustentabilidade ambiental e a consciência da finitude de certos recursos recolocam a questão da relação da sociedade com a natureza, reforçando o levantamento das realidades locais.
Até que ponto a geografia, essa disciplina interlocutora do Estado, envolvida com a construção de projetos nacionais, pode contribuir para o entendimento da dinâmica social contemporânea, é o tema do presente módulo que nós iniciamos aqui. Um módulo que aborda o espaço como paradigma conceitual contemporâneo. As próximas aulas visam fornecer elementos para tal resposta, refletindo sobre a nova ordem internacional, sobre o mito da desterritorialização e sobre o multiculturalismo.
São os temas das três aulas seguintes do módulo. Mas antes de terminar... Eu gostaria de destacar a relevância dessa discussão para a sociedade brasileira.
Nos países de formação colonial como o nosso, a geografia ganha, sem dúvida, uma centralidade explicativa muito grande, pois tratam-se de sociedades que foram geradas em processos de expansão territorial. Colonização é, antes de tudo, um tipo de relação sociedade-espaço. Uma relação de conquista que implica submetimento de populações, em apropriação de lugares e em exploração de recursos naturais.
Tais processos ainda estão em curso em nosso país. Um país que se ancora, e muito, numa visão territorial. Um país que é pensado por suas elites como um espaço, e como um espaço a ser conquistado, muito mais do que como uma sociedade, isto é, como uma nação.
Portanto, mesmo tendo um foco na ótica global, a geografia tem muito... a explicar e a fornecer para o conhecimento da nossa realidade nacional, que é onde se define, até a atualidade, o destino político de cada povo. Muito obrigado, eram essas ideias que eu trago para o nosso debate, que eu espero que seja bastante rico a partir de agora.
Só estão abertas as possibilidades de perguntas e espero que a gente tenha aqui uma discussão a partir dessas provocações que eu trouxe. Boa noite, professor. Eu sou aluno da Geografia da Unicamp e é muita honra para nós receber o senhor aqui.
O senhor tratou de bastante tema, com bastante relevância. Eu acho que, para uma abordagem mais pluralista da geografia... E uma dúvida que eu tenho é exatamente sobre essa questão de pós-modernidade, onde a gente vê a perda de sentido das teorizações marxistas. E uma vez lendo Jean Baudrillard, ele disse que a mais-valia entrou em órbita, junto com o capitalismo que entrou em órbita também.
E, então, é difícil para... os teóricos do marxismo detectar essa mais-valia que está tão dissolvida dentro das relações tão profundas do próprio capitalismo. E uma teorização muito interessante se remete ao professor professor Armando Corrêa da Silva, onde ele diz que, na verdade, o que aconteceu com essa mais-valia é que ela passou de um modo que era uma acumulação histórica, era uma mais-valia histórica, um excedente histórico absoluto e relativo, e, de repente, passou para uma mais-valia relacional composta, devido ao capital... de serviço, que é composto pelo capital tecnológico, capital de informação e capital de comunicação. Eu gostaria que o senhor comentasse sobre essa problemática, se dá para se retomar esse foco da teorização marxista, para hoje explicar essa questão, porque o marxismo perdeu muito sentido hoje, é visto de forma muito estranha hoje, é muito interessante como o marxismo é visto.
Na sua época de graduação, os marxistas eram vistos como rebeldes. E hoje, dentro da academia, a gente vê os marxistas como... como politicamente correto.
Basicamente isso. Muito obrigado. Bem, vamos uma por uma? Pode ser.
Olha, veja só. Em primeiro lugar, o marxismo é um campo extremamente diversificado de concepções que o único ponto em comum, talvez, que tem é partir da teoria social de Marx. E essa diversidade já vem de como se lê essa teoria social.
Ela pode ser lida como uma doutrina, certo? Ela pode ser lida como uma ciência, como fazia, por exemplo, a Universidade Soviética. E ela pode ser lida como um método, certo? No caso, um método das ciências humanas. Se ela for lida como...
Uma doutrina tem as explicações todas lá, até coisas que não existiam na época em que ela foi escrita, provavelmente já estariam explicadas ali e tal. Como ciência, ela substituiria toda a divisão das ciências humanas, quer dizer, não haveria geografia, nem história, nem psicologia, nem ciência política, e teria uma só ciência da totalidade. Como método, que me parece a visão mais adequada, seria um método aplicável em qualquer campo das ciências humanas. Não há marxismo em ciências naturais, mas em ciências humanas, em todos os campos, seria possível.
E mesmo assim nós teríamos diferentes leituras. Leituras animadas por cruzamentos do marxismo com outras influências filosóficas e leituras também animadas por práticas políticas muito diferentes a partir dessa teoria. Na verdade, o que é mais correto a gente falar hoje seria um campo.
Um campo metodológico que sai da teoria social de Marx e que, segundo alguns autores, ainda tem um grande poder explicativo. Estaria o Robsbaun, entre eles, por exemplo, que há pouco escreveu um artigo dizendo que, para explicar o capitalismo, na opinião dele, é o melhor método para explicar o mundo no qual nós estamos inseridos. O que não significa que seja o melhor método para construir outra... outra sociedade ou algo assim, ou que esteja integralmente correto. Agora, sem dúvida nenhuma, um traço da melhor tradição desse método é aceitar a história e as novidades trazidas pela história.
Então, obviamente, nós não podemos explicar uma realidade de hoje, na melhor tradição marxista, utilizando um livro escrito há 150 anos atrás, onde boa parte dessas coisas que nós queremos tematizar nem se punham como realidade, certo? Então, vou fazer uma explicação da internet a partir de Marx. Marx não conheceu nem o telefone, quanto mais a internet, certo?
Agora, veja só, uma avaliação dialética do próprio capitalismo diria o seguinte, o capitalismo ainda é aquele e é diferente. A formulação dialética. Ainda vivemos o capitalismo com todas aquelas contradições, com aqueles fundamentos, vamos dizer assim, dessa lógica societária que o Marx apontou, porém diferente, com elementos novos, com uma capacidade de renovação interna incrivelmente grande, tanto que é que o que se viu no século XX foi a crise do socialismo real e não do capitalismo, das experiências.
que tentavam um caminho socialista de organização da sociedade. Sem dúvida nenhuma, entre as coisas que foram ultrapassadas, está o cálculo da mais-valia. Quer dizer, aquele operário do filme Tempos Modernos, do Chaplin, certo?
No momento em que era possível calcular quanto do produto, de fato, era trabalho não pago, etc. e tal, isso explodiu plenamente com o uso. mais intensivo da tecnologia, com a quantidade de trabalho morto envolvida na produção de qualquer coisa e com todos esses novos setores vitais para o desenvolvimento das empresas e para o fluxo de mercadoria que não são exatamente aqueles da produção material. Basta a gente pensar na bolha, nas camadas.
De valorização fictícia que tem hoje qualquer grande empresa multinacional, então não apenas o capital financeiro, mas securitizações em cima do capital financeiro, você tem umas... eu arriscaria dizer... Quer dizer que pelo menos umas cinco camadas, vamos dizer assim, especulativas e financeiras em cima de qualquer grande fluxo, hoje em dia, de mercadorias.
Então isso tornou impossível o cálculo da mais-valia em termos do Marx. O que não quer dizer que o trabalho tenha deixado de ser o gerador do valor. Agora, ele é apropriado por formas muito mais sofisticadas, certo?
E junto com essas formas também veio uma grande inovação em termos da estratificação social. Quer dizer, de fato, nós não vivemos mais com a estrutura de classes do século XIX. Nós vivemos algo novo, certo? E cuja insegurança para tratar leva, inclusive, muitos autores a abrir mão de qualquer sentido e de qualquer explicação. Eu diria que, em grande parte, eu, pessoalmente, classificaria boa parte dos teóricos do pós-modernismo como a aceitação dessa impotência teórica de captar um sentido na nossa realidade e, a partir dele, construir alternativas.
Está difícil? Está difícil. Pensar transformações...
Bastante radicais nesse mundo em que vivemos. Porém, certo, sem dúvida nenhuma, as injustiças e as desigualdades estão aí para animar a encarar essa dificuldade que é, antes de mais nada, uma dificuldade teórica.